terça-feira, 27 de março de 2012

hoje dei pra acreditar nos cavalos rebeldes e suas crinas de asfalto
acordei feliz, mantive-me feliz
e não tive medo de dizer ao homem de são paulo que o amo
sem esperar nada em troca
talvez seja a análise,
talvez seja o leminski

(isto não é um poema, isto é uma recordação da escandinávia.)

eu era pequena e sonhava em sair de salvador
inventava história mirabolantes como: belo dia surgirá nave espacial que me mostrará ser o futuro exatamente onde havia pensado:

- longe

dona heliana ria e alertava: letícia, é impossível viver de ficção - lembre sempre que beleza é verdade, verdade é beleza (dona heliana detesta os românticos, mas idolatra john keats, veja só)

dona heliana nunca acreditou em deus mas tem a missa inteira em latim decorada e anda para cima e para baixo com uma novena do menino jesus de praga (o santo das causas impossíveis; "viver é uma causa impossível")

certa tarde me chega na caixa de entrada um e-mail sem assunto. era somente: "Seja sincera comigo. Tenho a sutileza de um elefante. E estou cada vez mais elefanta. A vida é dura."

no último sábado, minha mãe fez sessenta e dois anos. perguntei se gostaria de algum presente.

"Os presentes são objetos inúteis. Um texto (não gostaria que fosse um poema pois os poetas não sabem ganhar dinheiro) seria mais precioso do que um diamante)."

esse é para você, dona heliana maria.

domingo, 25 de março de 2012

para xico em uma noite de ressaca

lembra
de como estoavas estrada adentro
levando nas mãos fiapos de sono
e eletricidade?

quinta-feira, 15 de março de 2012

o poeta afasta o sono dos óculos e atravessa o estado de são paulo com um pássaro na mão

chove. fazem 24oC no passado do poeta e ele está sentado na saída de emergência sem sentir-se exatamente apto a forçar uma passagem (mas também falta-lhe a coragem para revelar a inaptidão)

o poeta não sabe o que faz dentro de um ônibus em são paulo
estou no ônibus das sete horas. o motorista se apresenta como ari, um negão alto, de cabeça raspada e loira. ao meu lado senta uma menina com uma carta na mão; um bilhete, melhor, desses escritos em caderninhos de anotação e arrancados com a espiral e tudo. tem os cabelos negros e uma toalha azul. tento ler o que está escrito (ela lê e relê, a primeira página totalmente escrita, a segunda com três linhas), se detendo em poucas palavras (e só de vez em quando). faz um sol do cacete em são paulo, quase como verão. já é março e ainda é verão (ou: o sol chegou mais tarde em são paulo). atrás de mim, um garoto vê televisão, num desses aparelhos modernos-disco voadores-só faltam falar. à minha frente, um homem de seus cinqüenta anos e quatro filhos lê a veja. por que um homem da veja pega um ônibus para o rio? (talvez superstição. medo de avião.) um senhor passa: óculos de linha e relógio de bolso. ainda fabricam relógios de bolso! um relógio de bolso indo ver o mar pela primeira vez, será? quero te levar para ver o mar, o jardim do mam na quarta-feira à tarde, a deselegância indiscreta das meninas do leblon; segurar tua mão para você dormir e te abraçar todas as minuciosas vezes quando viras o corpo e seguras meus braços em torno da tua cintura. é difícil partir. porque uma costela minha já fica bem aí, encostada às tuas.

sábado, 10 de março de 2012

caralho
como a gente corria contra o tempo
dentro da rua, invadindo
uma suposta dignidade

caralho
como eu gostava de ouvir as tuas
andanças sobre o azul
tu inventavas até o silêncio

tu: que nunca soubes apreciar uma verdade

o jornal de hoje ainda não publicou tua foto
deve estar atrasado
assim como o trem o senhorio
assim como a terça-feira que passou
e ninguém viu

terça-feira, 6 de março de 2012

de resto

1. não tenha medo da eletricidade

2. a noite é longa, mas eu te protejo

3. god bless silent pain and happiness

segunda-feira, 5 de março de 2012

são dezoito e trinta e seis e eu passei o dia a procurar apartamento, a imprimir extratos bancários, a preencher cheques de seguros-fiança e a reunir forças para agrupar palavras em conversas inúteis sobre tipos de amendoim com corretores que certamente prefeririam estar trepados a uma cabra e a uma atendente de supermercado ao mesmo tempo em uma orgia louca às quatro da tarde do que me convencendo de que aquela bosta na rodolfo dantas não vai precisar de uns cinco mil de reforma.

hoje é segunda-feira, cinco de março e já recebi cinco ligações de números bloqueados - nota mental: apenas desconhecidos sabem teu nome completo - e fiz as compras da semana. os ovos de páscoa no supermercado parecem armas de destruição em massa. saudade do cheiro da crença em algo: na parafina, no merthiolate, na literatura, no despertador. ou vai ver é falta de band-aid.
parem de dizer
que só escrevo poemas tristes

vocês com seus olhos de
nódoa
fazem chover em todos os meus
poemas
as minhas costelas pertencem
a francisco
as minhas costelas não querem sair
de francisco
as minhas costelas acordam quando os braços nus
de francisco as chamam para si

elas se desfazem
escorrem por francisco:

viram fiapos de manhã
em plena segunda-feira
de são paulo

domingo, 4 de março de 2012

salvador tornou-se triste, triste bahia. ó quão dessemelhante. criança, no colégio católico, inventava toda sorte de narrativas de exílio: mamãe havia ganho na loteria e iríamos nos mudar para o rio de janeiro, meu pai havia se mudado para são paulo e viria me pegar. nunca ganhou, nunca veio. ainda esperaria uma década para sair de salvador.

dentre as quinhentas paranóias norteadoras desse calcanhar, uma é constante: o pânico de voltar a viver na bahia. que é quase o mesmo pânico de voltar a estudar no colégio católico. mesmo depois de já ter trocado de colégio, matriculada & uniformizada, acordava suando, com os padres me perseguindo. situação de pânico: sentada, na mesma carteira, com aquele m azulado, rodeado pr estrelas, me perguntando por que diabos estava ali.

é ter nascido para ir embora. viver à espera do dia da liberdade, da carta de alforria. dezoito anos vividos em busca de uma saída. e agora, seis anos depois, salvador fica mais - e muito mais - parecida a um disco de caetano veloso.

feito em londres.